Países com alta incidência incrementam programas de erradicação de bactéria descoberta há 30 anos
Em 1984, os médicos australianos Robin Warren e Barry Marshall publicaram a versão completa do estudo no qual descreviam uma bactéria capaz de sobreviver à acidez do suco gástrico e de infectar a mucosa do estômago e causar inflamações. A Helicobacter pylori, popularmente conhecida como H. pylori, já atingia a população há milhares de anos, fato pelo qual os pesquisadores foram agraciados com o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, em 2005, por “reescreverem” a literatura científica no que diz respeito à causa de úlceras gástricas e gastrites. Trinta anos depois da descoberta tida como um marco na medicina, a bactéria transmitida por água e alimentos contaminados continua causando doenças gástricas, entre elas, o câncer de estômago.
Esse tipo de câncer, associado à presença da H. pylori, é o terceiro tumor maligno mais frequente nos homens e o quinto nas mulheres. Além disso, é responsável por 700 mil mortes por ano em todo o mundo e por 20 mil novos casos por ano no Brasil, uma incidência considerada moderada. Países com alta incidência desse tipo de tumor, como o Japão e Coreia do Sul, recentemente consideraram a infecção um problema de saúde pública e criaram programas de tratamento em toda a população infectada com o propósito de reduzir sua ocorrência no futuro. Mas, segundo o presidente do Núcleo Brasileiro para Estudo da Helicobacter pylori, Luiz Gonzaga Vaz Coelho, professor titular da Faculdade de Medicina e chefe do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), não só a bactéria causa o câncer.
“Ela é um fator necessário para o desenvolvimento do câncer, não a causa”, alerta Luiz Gonzaga, segundo o qual também estão envolvidos fatores ambientais, como alimentação, e hereditários. “A simples presença da bactéria no organismo não é suficiente para o desenvolvimento da doença”, explica. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 80% dos casos de câncer gástrico poderiam ser evitados com a erradicação da bactéria. Essa é a razão pela qual a Agência Internacional para Pesquisa em Câncer (IARC), da OMS, classificou a H. pylori como um carcinógeno classe I para o câncer de estômago. Isso quer dizer que ela está na mesma categoria do tabagismo para o câncer de pulmão e trato respiratório e dos vírus da hepatite B e C para o câncer do fígado.
Como qualquer bactéria com transmissão fecal-oral, por meio da ingestão de alimentos e água contaminados, os casos de H. pylori são mais comuns em países em desenvolvimento, com saneamento deficiente. No estômago do homem, a bactéria causa uma inflamação. Segundo Luiz Gonzaga, a imensa maioria das pessoas fica por toda a vida com a bactéria e ela não causa problema. “Entretanto, cerca de 10% dos que desenvolvem os sintomas da gastrite, como a dor no estômago, ou ainda mais graves, como os da úlcera gástrica. Um percentual ainda menor, estimado em menos de 1%, pode desenvolver o câncer de estômago”, explica o especialista. A maioria das pessoas se contamina antes dos 10 anos de idade.
Segundo o professor de gastroenterologa clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Décio Chinzon, de 60% a 65% dos brasileiros devem estar infectados com a bactéria, mas a maioria não sente nada. “Habitualmente, esse paciente tem uma queixa gástrica e só descobre a bactéria ao fazer uma endoscopia.” A bactéria também pode ser diagnosticada por meio de um teste respiratório, com marcador de ureia e exame de fezes com pesquisa de antígenos. Detectada, a bactéria pode ser tratada com a combinação de dois antibióticos com um inibidor de bomba de prótons, um tratamento relativamente simples e barato, pois dura de sete a 10 dias e está disponível na rede pública de saúde. Os índices de cura chegam a 90%.
ATENÇÃO
A recomendação é combater a bactéria, mas ao se considerar que mais de 60% dos brasileiros estão infectados seria economicamente inviável. Segundo Chinzon, tratam-se os sintomáticos, como aqueles pacientes com úlcera, os que tiveram diagnóstico confirmado e quem tem caso de câncer de estômago em parente de primeiro grau. Pacientes que farão uso crônico de anti-inflamatório também são candidatos ao tratamento. Segundo Luiz Gonzaga, no passado havia o temor de uma segunda infecção após a bactéria ter siso erradicada, mas estudos mineiros mostram que a reinfecção ocorreu em só 2% da população. Já uma possível vacina, apesar de em pesquisa, ainda é uma realidade distante. “É uma bactéria que aprendeu a sobreviver no estômago”, diz Luiz.
VICTOR HUGO RODRIGUES
ONCOLOGISTA E DIRETOR DO CETUS-HOSPITAL DIA
A H.pylori é considerada carginógeno classe I para câncer de estômago. Qual seu impacto no desenvolvimento da doença?
Apesar da alta frequência de infecção por H. pylori na população, somente uma minoria de indivíduos desenvolve câncer gástrico. Há dois tipos deles relacionados à bactéria H. pylori: o adenocarcinoma e o linfoma do tipo MALT. A H. pylori está intimamente ligada ao linfoma gástrico do tipo MALT, que se instala no tecido do revestimento interno. O linfoma gástrico tipo MALT é altamente curável e raro. Em estágios iniciais, o tratamento do câncer é a erradicação da H. pylori com antibióticos e, em estágios avançados, com quimioterapia para linfoma.
Por que isso ocorre?
É provável que a colonização da mucosa por cepas patogênicas, levando à maior agressão e inflamação da mucosa, seja um dos elos da cadeia de eventos da oncogênese gástrica. Após instalada, a bactéria provoca alterações na mucosa do estômago que lenta e progressivamente podem gerar a transformação carcinomatosa.
Em caso de diagnóstico de câncer de estômago, é preciso erradicar a bactéria? Ela pode agravar a doença?
É preciso erradicar a bactéria, sim, e diminuir sua perpetuação. Todo carcinógeno deve ser eliminado, sempre que possível. Uma vez que o câncer de estômago já estiver instalado em estágios mais avançados, não se cura a doença, mas também há indícios de se erradicar a bactéria.
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